Para se tratar com Cannabis, doentes enfrentam preconceitos
Desconhecimento e preconceito são duas palavras que acompanham o tema da Cannabis medicinal. Ontem, em um restaurante dos Jardins, uma juíza comentou com um amigo sobre as fortes dores no corpo causadas pela fibromialgia. “Às vezes, sou obrigada a faltar no trabalhar.” O amigo perguntou se ela havia ouvido falar sobre o tratamento com o óleo de Cannabis, indicado para dores crônicas. A juíza respondeu que sim, porém não poderia experimentá-lo. “Se alguém do juizado descobrisse, minha carreira estaria em risco”.
A fibromialgia é uma síndrome que provoca dores no corpo por longos períodos. A doença ganhou mais popularidade, quando Lady Gaga cancelou o show no Rock in Rio, em 2017, justamente por causa de uma crise. Já o ator americano Morgan Freeman, mais irreverente, costuma dizer abertamente que usa maconha para conter as dores no braço causada pela fibromialgia.
“As pessoas passam por cima dos preconceitos, quando o desespero bate”, diz a psiquiatra Eliane Nunes, diretora geral da SBEC (Sociedade Brasileira de estudo da Cannabis Sativa). “Mas ainda se deparam com a falta de médicos com conhecimento para prescrever. O Conselho Federal de Medicina se posicionou contra essa terapia e isso pesa muito”, diz Nunes.
Desespero foi o que passou a paulistana Maria Aparecida Carvalho, mãe de Clarian, que nasceu com síndrome de Dravet– doença que se manifesta no primeiro ano de vida, com múltiplas convulsões. Ela não tem cura. Recentemente, a ciência apontou o óleo de Cannabis como excelente anticonvulsivo e alívio às dores crônicas. Assista ao vídeo da entrevista de Cidinha.
“A síndrome de Dravet é uma epilepsia refratária severa, com risco de morte súbita. Muitas crianças nem chegam à adolescência”, explicou Cidinha, como é mais conhecida. “Clarian começou a convulsionar com cinco meses e meio. Era madrugada, quando minha filha ficou roxa e virou os olhinhos. Corremos para o hospital. Ela teve uma parada respiratória. Foi traumatizante.”
Durante mais de uma década, ela viveu com medo de a filha morrer a qualquer minuto. Cidinha dormia segurando a mão da pequena. Havia o risco de a menina convulsionar durante a noite –e se ninguém percebesse, poderia ser fatal. As crises duravam uma hora. Além da epilepsia, Clarian sofria de hipotonia (falta de força muscular). “Minha filha parecia uma boneca de pano.” Não conseguia subir a escada sozinha, nem brincar com os primos. Falava palavras desconexas.”
Aos 11 anos, Clarian tomou pela primeira vez o óleo de Cannabis . Uma decisão da mãe, que pesquisava tudo que poderia minorar o sofrimento da filha. Cidinha pagou US$ 500 por um frasco importado. As crises foram diminuindo de frequência e intensidade. Depois de seis meses de tratamento, Clarian ganhou mais firmeza no andar.
Sem possibilidade de continuar pagando pelo medicamento – que seria para toda a vida –, a mãe se arriscou. Primeiro, comprou o óleo de uma comunidade secreta do Rio até que decidiu plantar e fazer o próprio extrato. “Quando fiz isso escrevi para a Anvisa e depois procurei à Justiça. Não queria ser ilegal.”
Cidinha explicou o caso e disse que já estava plantando.”Eu acho que a juíza foi pressionada. No início, ela estava muito envolvida, emocionada e preocupada com minha situação. De repente tudo mudou.” A juíza declarou que não era da competência dela julgar o assunto.
Em seguida, transferiu a ação para o Fórum Criminal. A mãe de Clarian foi acusada de tráfico. Os advogados avisaram que ela podia ser presa a qualquer hora. Mas o medo real de Cidinha era que os policiais destruíssem os vasos, que já estavam para florir. “A primeira colheita seria suficiente para produzir remédio para um ano.”
No fim de 2016, um dia antes do recesso do Judiciário, ela recebeu inesperadamente uma liminar por e-mail. O juiz dizia não acreditar que uma mãe se esconderia atrás da doença de uma filha para vender droga. “Aquilo me deu tanta alegria. Depois de 11 anos de batalha, tudo parecia valer a pena. Foi libertador.” Cidinha foi a primeira pessoa em São Paulo e a terceira no Brasil a conseguir salvo-conduto para cultivar.
“A diferença entre a droga e o remédio está na dose. Até o Gardenal se misturado com álcool pode deixar alguém doidão. O médico me contou isso”, diz Cidinha, que hoje comemora a melhora da filha. “Sei que ela será meu eterno bebê, mas hoje ela tem uma vida saudável. Aos 16 anos, Clarian consegue andar de bicicleta, come bem, vai à escola, está se alfabetizando e fala com coerência.”
Cidinha é presidente e fundadora da Cultive (Associação de Cannabis e Saúde), que tem apoio de vários médicos como Nunes e Yuri Barbosa –também da SBEC. “Plantar a cepa certa, em terra orgânica e sem aditivo de agrotóxico são caraterísticas importantes para o plantio medicinal. Ainda tem toda a energia que eu coloco, por ser um remédio para minha filha.” Até agosto desse ano, segundo o advogado Emílio Figueiredo, da Reforma, foram concedidos 42 autorizações para o plantio de Cannabis sativa para fins medicinais no Brasil.