Anvisa provoca constrangimento e medo ao expor emails de pacientes

Cannabis ruderalis
Valéria França

Se o tratamento à base de Cannabis medicinal fosse feito a partir de qualquer outra erva, menos conhecida e sem o peso do preconceito, os pacientes não passariam por tantos constrangimentos. A burocracia do processo –preenchimento de uma longa ficha cadastral por um sistema digital, que nem todos os brasileiros estão aptos a lidar, e uma espera de dois meses em média pela autorização de compra– já causa, no mínimo, embaraço, desânimo e ansiedade.

Na última quinta-feira (29), uma “gafe”, digamos, da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) desvendou medos e sensação de muita insegurança por parte dos pacientes e familiares. A questão gira em torno de um email da agência alertando sobre o aumento do prazo de validade de um ano para dois anos das autorizações de importação já emitidas. Até aí, ok. O comunicado trazia boa notícia.

O problema é que no destinatário estavam expostos os endereços eletrônicos de todos os cadastrados no sistema –de empresas, médicos e pacientes. Comunicados, geralmente, são enviados pelas empresas com cópias ocultas, uma formatação comum onde nenhum destinatário enxerga o endereço do outro. Mantém a privacidade de quem recebeu e ainda o destinatário sente-se privilegiado, como se a mensagem fosse apenas para ele.

Muitos pacientes ficaram “devastados e se sentiram invadidos” ao ver o próprio endereço eletrônico compartilhado em uma comunicação da agência.  “Estou tomando uma substância proibida. Ninguém pode saber que eu uso o medicamento. Posso ter problemas no emprego”, diz uma paulistana de meia idade, que usa a Cannabis medicinal para minimizar as sequelas neurológicas de um AVC. Ela se sente tão desconfortável em precisar do óleo, que fala do próprio caso em terceira pessoa.

O canabidiol saiu da lista de substâncias proibidas em 2015, quando foi aprovado para uso terapêutico e sujeito a controle. A sensação de transgressão desta paciente, no entanto, é bem explicável. “A guerra às drogas durou tempo suficiente para que virasse uma paranoia”, diz o médico pediatra Olair Rafael da Silva, 60, um dos 1.200 mil médicos que prescrevem a Cannabis, de um total de cerca de 450 mil profissionais com CRM no Brasil.

A guerra às drogas foi deflagrada pelo presidente Richard Nixon, em 1971, nos EUA, que as transformaram “no inimigo público número 1” do país e do mundo. Não por outro motivo, muitas gerações cresceram com os pais alertando para se afastarem dos maconheiros–então sinônimo de má companhia.

“Legalmente ninguém pode ser prejudicado por usar este medicamento, mas não impede que alguém seja preterido no trabalho por causa disso. Nesta lista tem pessoas que estão em condições muito diferentes”, diz a psiquiatra Eliane Nunes, diretora da Sbec (Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis). Ela se refere ao estado psíquico, econômico e de formação de cada um deles. “Eu acho muito grave o que aconteceu.”

Na última quinta (29), Nunes passou o dia ao telefone acalmando pacientes amedrontados. O mesmo aconteceu com Silva. Os doentes procuraram os médicos com receio de a lista ser copiada ou vendida. “Muitos colocaram em dúvida a responsabilidade da Anvisa.  Enfim, diante da lógica deles, se foram compartilhados e-mails, outras informações também estariam vulneráveis.”

Os laboratórios de Cannabis e representantes que também receberam o e-mail dizem que jamais fariam uso da lista. Coincidência ou não, houve paciente que, a partir daquele dia, começou a receber propagandas pelo correio eletrônico. Foi o caso do técnico em farmácia e pesquisador de fitoterápico Alberto Giovannini, 60. “Desde então chegam propagandas de fabricantes de Cannabis”, diz ele, sem conseguir lembrar os nomes das empresas. “Se a Anvisa tem esse desleixo, como fica o resto? Foi uma falha, eu entendo isso, mas não deveria acontecer.”

Giovannini não se alterou com o acontecido. Porém diz que a exposição não é boa. “Já sou normalmente alvo de piadinhas dos amigos pelo fato de dar Cannabis para meu “anjinho azul” (nome dado as crianças autistas). Não fico nervoso, mas é chato e preconceituoso.”

A Anvisa não admite erro. Muito menos quebra de sigilo. Em um comunicado geral a imprensa, deu o seguinte esclarecimento na última sexta (30): “A mensagem eletrônica então enviada compõe um conjunto de ações de comunicação, iniciadas no início desta semana e trata-se, portanto, da ampliação do conhecimento sobre a extensão da validade da Autorização de Importação de produtos à base de canabidiol. As medidas são fruto da revisão da RDC 17/2015 e buscam a otimização dos prazos e por consequência melhoria e extensão ao acesso dos medicamentos. A Anvisa trabalha pela melhoria e eficiência de seus processos. Neste contexto, foi encaminhado conteúdo meramente informativo, que não contempla informação sigilosa. As novas estratégias de comunicação permitirão que um maior número de pessoas tenham conhecimento da simplificação adotada para garantir o direito à saúde do cidadão.”

Para os pacientes, o acontecido é mais um dissabor neste processo desgastante, onde cada avanço tem por de trás a luta de familiares e doentes pelo direito ao acesso do tratamento, que inclui manifestações públicas, ações na justiça e até o risco da compra do produto no mercado paralelo.